sexta-feira, 1 de abril de 2011

CRAVING OU FISSURA

RESUMO
O craving ou fissura, cuja definição mais comum é o desejo intenso por uma substância, é um conceito controverso entre os pesquisadores da área da dependência química.
OBJETIVO: Realizar revisão teórica a respeito do craving nos bancos de dados PsycInfo, Medline, ProQuest e Science Direct.

MÉTODO: As palavras-chave utilizadas foram craving, dependence e drug e o período pesquisado foi entre 1995 e 2007.

RESULTADOS: Os resultados demonstraram que são encontrados diversos significados para o craving, alguns se restringindo a desejo, e outros, considerando-o não só como desejo, mas como antecipação do resultado positivo do uso da substância, alívio dos sintomas de abstinência ou afeto negativo e intenção de fumar, o que reflete uma visão multidimensional deste construto. A etiologia do craving pode ser explicada por intermédio dos modelos: comportamental, cognitivo ou psicossocial e neurobiológico, porquanto a opção por um destes influencia a avaliação e o manejo.

CONCLUSÃO: Conclui-se quanto à multidimensionalidade do craving e quanto à necessidade de que seja utilizado um modelo biopsicossocial que integre os diversos modelos no tratamento de dependentes químicos. Destaca-se a importância da realização de mais estudos para a compreensão do craving em função deste ser um dos principais riscos de recaída.

INTRODUÇÃO
A idéia de elaborar este estudo surgiu a partir de dois pacientes que informaram, em ocasiões diferentes, que superavam o craving ingerindo doces. Na situação de craving um dos pacientes chegava a consumir até uma lata de leite condensado e o outro três barras de chocolate ao leite. Esses pacientes estavam em tratamento por dependência de cocaína aspirada em ambiente protegido. Geralmente, no ambiente protegido, o craving é superado com a ajuda psicológica e psiquiátrica, com o apoio da equipe de enfermagem, de colegas de tratamento ou pelo próprio paciente dirigindo-se para uma atividade, por exemplo prática esportiva.
Craving, também chamado fissura, "é um forte impulso subjetivo para usar a substância", experimentado pela maioria, senão por todos os dependentes de substância psicoativa (DSM-IV, 1995). Craving é um fenômeno que resulta em respostas fisiológicas e psicológicas a partir de um forte desejo para obter e consumir a substância. O anseio pela substância estaria associado com indicadores que lembram o reforço positivo e não com indicadores que evocam a abstinência, já que as drogas podem ser reforçadoras pela extinção dos estados aversivos (JAFFE, 1999a).
Estudos têm relacionado o craving com alterações em neurotransmissores como a depleção de dopamina, alterações do nível de serotonina (SATEL et al, 1995; LITTLE et al, 1996; JACOBSEN et al, 2000) e alterações no sistema límbico e lobo frontal (CHILDRESS et al, 1999; WEXLER et al, 2001). As ações de reforço associadas à gratificação de alimento, sexo ou de certas drogas dependem criticamente do circuito dopaminérgico. Há evidências que drogas como a nicotina, canabinóides e cocaína ativam trajetos dopaminérgicos especialmente ligados ao núcleo acumbente. Entretanto, as ações da cocaína não são seletivas apenas para a dopamina. A cocaína tem quase igual potência para bloquear a recaptação da norepinefrina, serotonina e, em certa medida, a acetilcolina. Também as propriedades reforçadoras não são exclusivas da droga ou do estímulo. Estudos laboratoriais, com voluntários humanos pós-adição sobre o metabolismo da glicose cerebral e fluxo sangüíneo cerebral, demonstraram que quando os sujeitos experienciam euforia induzida por opióides ou cocaína há uma diminuição no metabolismo de glicose cerebral, principalmente nas áreas corticais (JAFFE, 1999a, 1999b).
Açúcares são encontrados naturalmente em muitos alimentos. Açúcares são carboidratos convertidos em glicose pelo trato digestivo e pelo fígado antes de chegarem às células. No interior das células reagem quimicamente ao oxigênio sob a influência de inúmeros enzimas que controlam as reações e catalisam a energia. Essas reações oxidantes ocorrem geralmente no interior das mitocôndrias e a energia liberada é, em grande parte, usada para formar o ATP, o qual é utilizado por cada célula nas reações metabólicas intracelulares. Glicose no sangue estimula a secreção de insulina que promove sua captação, armazenamento e sua rápida utilização para os tecidos do corpo, especialmente nos músculos, tecido adiposo e fígado. Quantidades de glicose, na ausência de insulina, ficam concentradas no fígado e no cérebro. O tecido cerebral difere de outros tecidos do corpo, pois a insulina exerce nele pouco ou nenhum efeito sobre a utilização ou a captação da glicose. Os neurônios são permeáveis à glicose, utilizando-a para fins energéticos (GUYTON e HALL, 1997).
Neste estudo referimos em especial à sacarose, o açúcar extraído da cana de açúcar, e à lactose, o açúcar do leite, que são muito utilizados nas receitas caseiras e industriais de bolos, doces, confeitos, sucos, refrigerantes, enfim, na composição de inúmeros produtos alimentícios.
Estudos epidemiológicos apontaram que o consumo de açúcar, como de outros carboidratos, está associado a fraqueza e não com obesidade (ANDERSON, 1995). Para WURTMAN e WURTMAN (1995) a liberação de serotonina no cérebro depende do tipo de alimento consumido. Os carboidratos durante a digestão são desdobrados em aminoácidos, vitaminas e minerais, os quais são absorvidos indo para a corrente sanguínea. Uma reação química faz o aminoácido triptofano se desligar da proteína albumina e circular livremente no sangue. Dessa maneira, mais triptofano livre chega ao cérebro para a fabricação de serotonina.
Portanto, aumento de serotonina está relacionado com consumo de carboidratos, fato que não ocorre quando da ingestão de proteínas. Essa sinalização dos neurotransmissores, (consumo de carboidratos ? aumento de serotonina) é um vínculo no mecanismo de re-alimentação que regularmente mantém o consumo de carboidratos e proteínas. Consequentemente há pessoas que aprendem a consumir demais certos alimentos ricos em carboidratos e gorduras porque se sentem bem devido o aumento da serotonina. Esse aprendizado para utilizar certas comidas, à semelhança de uma droga, um tipo de relação chamada de "comida e humor", pode resultar em ganho de peso, fato que se observa em mulheres com síndrome pré-menstrual, em pessoas com "depressão de inverno", em pacientes bulímicos com peso normal ou em pessoas que estão tentando parar de fumar, já que a retirada de nicotina, tal como uma dieta de carboidratos, diminui a secreção de serotonina no cérebro, o que pode tornar essas pessoas irritadas ou deprimidas (WURTMAN e WURTMAN, 1995).
Açúcar já foi responsabilizado por vários transtornos, inclusive hiperatividade em crianças, mas refutados em ensaios clínicos (LEE e PAFFENBARGER JR, 1998). Existem poucos apoios à evidência que o consumo de açúcar tenha efeito significativo no comportamento e desempenho cognitivo de crianças. Parece que há um papel da glicose na potenciação da memória, mas a relevância clínica e os mecanismos envolvidos requerem pesquisas adicionais a esse respeito. Não há dados significativos que a sacarose tenha propriedades analgésicas, porém, especialmente em crianças, pode ter um efeito sedativo (WHITE e WOLRAICH, 1995; WOLRAICH, WILSON e WHITE, 1995).
KAMPOV-POLEVOY, GARBUTT e JANOWSKY (1997) e KAMPOV-POLEVOY et al (1998) encontraram uma associação entre a preferência para soluções mais fortes de doces e dependência de álcool. Preferência exagerada por doces e a tendência para novas experiências pessoais estariam ligadas ao alcoolismo, já que as reações ligadas ao prazer pelo açúcar e pelo álcool no cérebro são muito parecidas.
A informação de dois pacientes que consumir um alimento doce fazia superar o craving e a conseqüente base teórica apresentada foram as principais justificativas para a elaboração deste estudo. Assim, levantou-se a seguinte questão: a superação do craving consumindo doce são dados isolados experienciados por esses dois pacientes ou um comportamento mais freqüente em dependentes de cocaína crack?
Daí, o desenho de um estudo clínico transversal de observação, portanto exploratório, com o objetivo de constatar a freqüência e a relação craving-consumo de doce em pacientes em tratamento por dependência de cocaína aspirada e/ou crack.

MÉTODO
Este estudo foi desenvolvido na Clínica Mirante do Instituto Bairral de Psiquiatria de Itapira, Estado de São Paulo, cujo programa terapêutico atende pacientes voluntários dependentes de substâncias psicoativas em ambiente protegido. O trabalho é nos moldes de comunidade terapêutica e coordenado por uma equipe multidisciplinar (ZAGO et al, 1999).
Portanto, a amostra foi constituída de pacientes em tratamento e aqueles que cumpriam os critérios de inclusão eram selecionados para o estudo, depois de devidamente informados e de consentirem livremente sua participação na pesquisa.
Os dados para a inclusão/exclusão foram obtidos por meio dos prontuários clínicos dos pacientes.
Os critérios de inclusão foram: idade entre 15 a 65 anos; ambos os sexos; primeiro diagnóstico de dependência de cocaína e/ou crack; e outros diagnósticos por uso nocivo, abuso ou dependência de outras substâncias psicoativas de acordo com a CID-10 (1993).
Foram critérios de exclusão: diagnóstico de outros transtornos que não abuso ou dependência de substância psicoativa de acordo com a CID-10 (1993); histórico de diabetes identificado por exame clínico.
O exame psiquiátrico e o diagnóstico eram elaborados por um dos psiquiatras da equipe na admissão do paciente.
O paciente incluído no estudo era entrevistado individualmente e a entrevista era conduzida obedecendo os seguintes itens:
◦dados sócio-demográficos;
◦tempo de internação (abstinência);
◦ausência/presença de ocorrência de craving no período de abstinência, isto é, durante a internação: ausente; de 1 a 3 vezes; mais de 3 vezes. Se presença de craving: consumo de algum doce (produto alimentício, caseiro ou industrializado, sólido, pastoso ou líqüido, tendo o açúcar de cana (sacarose) ou o leite (lactose) como um de seus ingredientes; que não é salgado, azedo nem picante) durante o craving e experienciando que o craving foi superado com a ingestão desse alimento. Se afirmativo, qual doce consumido nessa ocasião?
◦freqüência do consumo de doce antes da internação (pressupondo o uso da substância) e durante a internação (em abstinência da substância): nenhum; de 1 a 2 vezes/semana; de 3 a 5 vezes/semana; mais de 6 vezes/semana.
Por ser um estudo clínico transversal e de observação, os dados foram analisados em freqüências absolutas e relativas. Foram construídas tabelas a partir dos dados obtidos.

RESULTADOS
Ttabela 1: os dados descritivos e comparativos das variáveis sócio-demográficas da amostra (n = 26). Da amostra, 42,3% dos pacientes entrevistados responderam não sentir craving na abstinência (durante a internação) (não-craving; n = 11); 26,9% responderam positivamente para craving ( craving; n = 7) e 30,7% responderam que sentiram craving e o superaram consumindo doce (craving-doce; n = 8). No total, 57,6% (n = 15) da amostra referiram sentir craving.
As características sócio-demográficas mais freqüentes da amostra foram: 92,3% do sexo masculino; 46,1% na faixa etária de 31 a 40 anos; 61,5% solteiros e 57,6% empregados, de ensino médio e católicos. As menos freqüentes foram: 7,6% do sexo feminino; 7,6% com idade inferior a 20 anos; 15,3% casados; 3,8% aposentados; 25,3% ensino fundamental e 3,8% de religião budista. A procura no serviço, na sua maioria, por pacientes do sexo masculino em relação ao feminino explica a freqüência de 7,6% para o sexo feminino.
Tabela 1: Dados descritivos e comparativos das variáveis sócio-demográficas em freqüências absolutas e relativas.

Não-craving Craving Craving-doce Total
Variável Categorias n (%) n (%) n (%) n (%)
Sexo Masculino 9 (34,6) 7 (26,9) 8 (30,7) 24 (92,3)
Feminino 2 (7,6) 0 (0,0) 0 (0,0) 2 (7,6)
Faixa < 20 anos 1 (3,8) 1 (3,8) 0 (0,0) 2 (7,6)
Etária 21 a 30 4 (15,3) 2 (7,7) 3 (11,5) 9 (34,6)
31a 40 5 (19,2) 3 (11,5) 4 (15,3) 12 (46,1)
> 40 anos 1 (3,8) 1 (3,8) 1 (3,8) 3 (11,5)
Estado Solteiro 7 (26,9) 5 (19,2) 4 (15,3) 16 (61,5)
Civil Casado 2 (7,6) 1 (3,8) 1 (3,8) 4 (15,3)
Separado 2 (7,6) 1 (3,8) 3 (11,5) 6 (23,0)
Sit. Prof. Empregado 7 (26,9) 3 (11,5) 5 (19,2) 15 (57,6)
Desempregado 2 (7,6) 2 (7,6) 3 (11,5) 7 (26,9)
Aposentado 1 (3,8) 0 (0,0) 0 (0,0) 1 (3,8)
Estudante 1 (3,8) 2 (7,6) 0 (0,0) 3 (11,5)
Ensino Fundamental 2 (7,6) 0 (0,0) 2 (7,6) 4 (15,3)
Médio 5 (19,2) 5 (19,2) 5 (19,2) 15 (57,6)
Superior 4 (15,3) 2 (7,6) 1 (3,8) 7 (26,9)
Religião Católica 5 (19,2) 6 (23,0) 4 (15,3) 15 (57,6)
Evangélica 1 (3,8) 0 (0,0) 1 (3,8) 2 (7,6)
Espírita 3 (11,5) 0 (0,0) 1 (3,8) 4 (15,3
Budista 0 (0,0) 1 (3,8) 0 (0,0) 1 (3,8
Sem religião 2 (7,6) 0 (7,6) 2 (7,6) 4 (15,3)

Quanto ao grupo craving-doce (n = 8) as características sócio-demográficas mais freqüentes foram: 30,7% do sexo masculino; 15,3% na faixa etária de 31 a 40 anos; 15,3% solteiros; 19,2% empregados; 19,1% ensino médio e 15,3% católicos.
Os dados descritivos e comparativos das características clínicas são apresentados na tabela 2. A maioria da amostra, 61,5%, fazia uso dependente de cocaína; 19,2% de crack e 19,2% de cocaína e crack.
Quanto ao uso nocivo, abuso ou mesmo dependência de outras substâncias associadas à dependência de cocaína-crack, a maior freqüência foi de álcool-tabaco, 38,4%; seguida de dependência de tabaco, 30,7%. No grupo craving-doce a maior freqüência foi a associação álcool/tabaco, 23,0%. No que se refere à medicação, para 57,6% estava prescrita uma média de 10 a 20 mg/dia de benzodiazepínicos (BZDs) e 34,6% sem medicação psiquiátrica. Para o grupo craving-doce (n = 8), 6 ou 23,0% tinham prescrição de BZDs. A maioria das entrevistas (76,8%) foi realizada no período de 5 a 12 dias de abstinência.

Tabela 2: Dados descritivos e comparativos das variáveis clínicas em freqüências absolutas e relativas.
Não-craving Craving Craving-doce Total
Variável Categorias n (%) n (%) n (%) n (%)
Diagnóstico Cocaína 7* (26,9) 3 (11,5) 6 (23,0) 16 (61,5)
Crack 1 (3,8) 2 (7,6) 2 (7,6) 5 (19,2)
Cocaína-crack 3 (11,5) 2 (7,6) 0 (0,0) 5 (19,2)

Outras substâncias

Álcool 1 (3,8) 2 (7,6) 0 (0,0) 3 (11,5)
Tabaco 5 (19,2) 2 (7,6) 1 (3,8) 8 (30,7)
Cannabis 2 (7,6) 0 (0,0) 0 (0,0) 2 (7,6)
Álcool/tabaco 1 (3,8) 3 (11,5) 6 (23,0) 10 (38,4)
Cannabis/álcool 0 (0,0) 0 (0,0) 1 (3,8) 1 (3,8)
Tabaco/cannabis 1 (3,8) 0 (0,0) 0 (0,0) 1 (3,8)
Sem outras substâncias 1 (3,8) 0 (0,0) 0 (0,0) 1 (3,8)
Medicação
BZDs 5 (19,2) 4 (15,3) 6 (23,0) 15 (57,6)
BZDs+fluoxetina 1** (3,8) 0 (0,0) 0 (0,0) 1 (3,8)
BZDs+piracetan 1 (3,8) 0 (0,0) 0 (0,0) 1 (3,8)
Sem medicação 4 (15,3) 3 (11,5) 2 (7,6) 9 (34,6)

Período de abstinência

< 4 dias 0 (0,0) 1 (3,8) 0 (0,0) 1 (3,8)
de 5 a 8 dias 6 (23,0) 4 (15,3) 4 (15,3) 14 (53,8)
de 9 a 12 dias 3 (11,5) 1 (3,8) 2 (7,6) 6 (23,0)
> 12 dias 2 (7,6) 1 (3,8) 2 (7,6) 5 (19,2)

* um caso de cocaína injetável
** mantida a fluoxetina na admissão, porém não diagnosticado com transtorno depressivo.

Na tabela 3, 42,3% da amostra para ausência de craving. No grupo craving (n = 7) e no craving-doce (n = 8), 38,4% referiram mais de três vezes e 19,2% de uma a três vezes no período de abstinência. Quanto ao grupo craving-doce (n = 8), 23,0% referiram craving por mais de três vezes no período de abstinência, o que significa 75,0% em relação ao próprio grupo (6 ÷ 8.100 = 75,0%). De modo geral, o craving ocorria pela manhã, estimulado por um sonho relacionado à substância; ou, com mais freqüência, ao anoitecer estimulado por apologias à substância. Informaram que o aprendizado de buscar um alimento doce no craving ocorreu de forma natural.

Tabela 3: Ausência/presença de craving em freqüências absolutas e relativas.
Não-craving Craving Craving-doce Total
Ausência/presença n (%) n (%) n (%) n (%)
Ausente 11 (42,3) 0 (0,0) 0 (0,0) 11 (42,3)
Presença:
ƒi de 1 a 3 0 (0,0) 3 (11,5) 2 (7,6) 5 (19,2)
ƒi > 3 vezes 0 (0,0) 4 (15,3) 6 (23,0) 10 (38,4)

Na tabela 4 são apresentados os tipos de doces mais utilizados na superação do craving: chocolate ao leite (de duas a três barras; cerca de 60g a 90g), 62,5%; brigadeiro, 25,0% (média de quatro unidades) e goiabada, 12,5% (+ ou - 150g). É importante apontar que cinco desses pacientes, antes da internação, informaram que superavam situações de craving consumindo doces na tentativa de evitar ou substituir o uso da substância. Também informaram um exagerado consumo de doces e refrigerantes durante o crash como forma de "recuperar a energia".
Tabela 4: Tipo de doce consumido no controle do craving.

(n = 8)
Doce n %
Chocolate ao leite 5 (62,5)
Brigadeiro 2 (25,0)
Goiabada 1 (12,5)

Tabela 5: Consumo usual de alimento doce antes/durante a internação (abstinência) em freqüências absolutas e relativas.

Não-craving Craving Craving-doce Total
Consumo de doce n (%) n (%) n (%) n (%)

Antes da internação
Nenhum 4 (15,3) 3 (11,5) 2 (7,6) 9 (34,6)
1 a 2 vezes/semana 1 (3,8) 2 (7,6) 3 (11,5) 6 (23,0)
3 a 5 vezes/semana 4 (25,3) 1 (3,8) 2 (7,6) 7 (26,9)
Mais de 6 vezes/semana 2 (7,6) 1 (3,8) 1 (3,8) 4 (15,3)

Durante a internação

Nenhum 1 (3,8) 0 (0,0) 0 (0,0) 1 (3,8)
1 a 2 vezes/semana 1 (3,8) 0 (0,0) 0 (0,0) 1 (3,8)
3 a 5 vezes/semana 5 (19,2) 2 (7,6) 4 (15,3) 11 (42,3)
Mais de 6 vezes/semana 4 (15,3) 5 (19,2) 4 (15,3) 13 (50,0)

O consumo de alimento doce durante o uso da substância (antes da internação) e na abstinência (durante a internação), portanto não necessariamente relacionado à situação de craving, é apresentado na tabela 5. A maioria da amostra, 34,6%, disseram não consumir doces antes da internação; 26,9% consumiam alimento doce de 3 a 5 vezes na semana; 23,0% de uma a duas vezes na semana e 15,3% mais de seis vezes na semana. O grupo não-craving (n = 11) apresentou a maior freqüência de consumo de doces antes da internação, ou seja, 25,3% que consumiam doces de 3 a 5 vezes/semana. Durante a internação, 50,0% afirmaram consumir alimento doce mais de seis vezes/semana e 42,3% de três a cinco vezes/semana. Esse aumento estava relacionado não só ao consumo da sobremesa servida após as duas refeições principais, mas também ao consumo de outros doces e refrigerantes no decorrer do dia.

DISCUSSÃO
Por ser um impulso subjetivo, geralmente associado às lembranças dos efeitos reforçadores da substância, as variáveis sócio-demográficas, bem como suas respectivas categorias, pareceram não exercer diretamente uma relação com a presença ou ausência do craving. Os BZDs, utilizados nos primeiros dias para ajudar a superar sintomas de abstinência, depois retirados gradativamente, também pareceram não estar diretamente relacionados com o controle do craving (15,3% para n = 7 e 23,0% para n = 8).
É evidente que o fator dependência de cocaína crack é a condição essencial para a presença do craving. Entretanto, parece não ser o único, pois 42,2% referiram não sentir craving durante a primeira semana de abstinência ou de internação. É possível que, além da dependência da substância, devam existir outras variáveis, como disposições subjetivas e estímulos externos e, provavelmente, diferenças individuais. É importante notar, nos grupos que referiram presença de craving, uma relação com a associação álcool/tabaco, ou seja, 11,5% no grupo craving (n = 7) e 23,0% no grupo craving-doce (n = 8), embora a referência ao craving fosse informada exclusivamente para cocaína crack, portanto não ao álcool.
Quanto ao principal enfoque deste estudo, 30,7% da amostra referiram superar a situação de craving consumindo alimento doce com freqüência de uma a três vezes (n = 2) e mais de três vezes (n =6) durante o período de abstinência. Dessa maneira, este estudo mostrou que o consumo de doce como forma de superar o craving não pareceu ser um dado isolado.
No grupo craving-doce (n = 8) o consumo de chocolate ao leite ( n = 5; 62,5%) e brigadeiro, cuja composição básica é chocolate em pó, leite condensado e manteiga, (n = 2; 25,0%) foram os doces mais consumidos para a superação do craving.
TOMASO, BELTRAMO e PIOMELLI (1996)informaram que o chocolate contém substâncias que podem imitar os efeitos da cannabis, pois ativa os mesmos receptores neurais de canabinóides ou indiretamente aumentando os níveis de anandamida. O chocolate contém pequenas quantidades de anandamida, a qual é produzida naturalmente no cérebro em baixas quantidades. O chocolate aumentaria o nível de anandamida produzindo sensações de bem estar.
Os dados obtidos e analisados com o referencial teórico sugeriram algumas inferências sobre o consumo de doce (= açúcar) como forma de superar o craving.
Primeira: o consumo de açúcar teria um efeito placebo, quer dizer, o consumo de doce no craving e a sua conseqüente superação resultaria de um aprendizado de auto-sugestão.
Segunda: com base em WURTMAN e WURTMAN(1995), o consumo de açúcar no craving aumentaria o nível de serotonina no cérebro, regulando então o humor e eliciando uma situação de bem estar. SATEL et al (1995) relataram que sujeitos apresentaram menos desejo (craving induzido) por cocaína depois de terem consumido uma bebida com aminoácido com triptofano do que após o consumo de uma bebida de efeito placebo.
Terceira: o craving causaria uma diminuição do metabolismo de glicose no cérebro, principalmente nas áreas corticais, conforme descrito por JAFFE (1999a, 1999b) sobre a diminuição do metabolismo da glicose e o fluxo sangüíneo no cérebro em voluntários pós-adição de opióides e de cocaína. Com isso o consumo de açúcar durante o craving reequilibraria o metabolismo de glicose no cérebro.
Ainda, em referência ao chocolate sobre sua possível atividade no controle do craving, é possível que esteja mais relacionada ao açúcar contido em sua composição do que com as propriedades características do cacau em ativar receptores de canabinóides ou elevar o nível de anandamida, conforme informado por TOMASO, BELTRAMO e PIOMELLI (1996).
Na prática clínica é observado que há uma tendência dos dependentes em tratamento aumentar naturalmente o consumo de alimentos doces quando interrompem o uso da substância psicoativa. Essa tendência foi confirmada na amostra estudada, quando comparada ao consumo de alimento de doce antes da internação (no período de uso da substância) e durante a internação (na abstinência), onde 90,3% responderam consumir doces mais de três vezes por semana. Desse modo, o aumento do consumo de alimentos doces na abstinência seria uma forma natural para compensar a falta da cocaína crack ou para recuperar a desnutrição causada pelo consumo dessas drogas?
Considerando as limitações próprias de um trabalho clínico de observação, principalmente as limitações metodológicas e o número de sujeitos, os resultados deste estudo sugerem perspectivas não só para a elaboração de pesquisas experimentais, mas também questões no campo da neurociência, da nutrição clínica e do comportamento do dependente de substância psicoativa em tratamento.

Autor
José Antônio Zago joseantoniozago@ig.com.br
Psicólogo do Instituto Bairral de Psiquiatria - Itapira - SP.
Mestre em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba.