domingo, 23 de janeiro de 2011

AVIA MENTES

Hora do almoço.
Ufa, era sempre uma boa hora. Trabalho por necessidade, já poderia estar aposentada, mas os compromissos impedem o ansiado afastamento.
Estou com um peso muito acima do que posso carregar, então, mesmo que não é o regime i-deal, eu não almoço. Como uma porcaria qualquer e finjo que está ótimo. Sobra tempo para bater perna e fazer coisas que tornem o dia suportável.
Já está mais do que na hora de morrer, os algozes lá de cima não me dão esse brinde.
Ontem perdi um botão de meu casaco de guerra, preciso dar um jeito de encontrar outro igual. Adoro visitar a loja de aviamentos. Trancelins, fitas, aplicações, sianinhas, linhas de todas as cores, agulhas, tesouras especiais... Ai, meu peito se enche de alegria. Imagino as maravilhas que faria com essas belezuras.
Vim aqui procurar botões, me doutrino. Vou apenas olhar as outras coisas. Só de brincadeira.
Ana Cristina mexe e remexe nos balaios de promoção, é o que mais gosta. Sempre encontra alguma coisa imperdível. Não é supérfluo, amanhã ou depois precisará e, com certeza, terá que pagar o preço alto normal. No fundo é economia.
Em meio ao colorido desejo, ela está bem, leve. Esquece a família maluca que a come por uma perna. Um pensamento de lembrança atravessa a tranqüilidade. Franze o rosto, tem que visitá-los hoje, levar o rancho por que são incapazes de se manterem. Dependentes de tudo e para tudo.
Precisa não se esquecer dos pirulitos para o cachorro. A irmã diz que o bichinho chora se não come as bolas açucaradas. Aumentar a quantidade de leite. O cunhado é viciado em leite. Quem não acredita que vá ver. Três litros por dia, tomados às escondidas, a caixa cheirando o sovaco para ninguém ver e o copo sempre cheio na mão.
Quem paga as insanidades? Ela. Ana Cristina.
Cinco sobrinhos, seus filhos que por sua vez são piores que coelho, já tem rebentos. Criança para todo lado. Todos pendurados na casa da irmã que, por sua vez, pendura-se nela. Um varal de gente superposta umas às outras. Nem sabe como conseguem manter uma certa identidade na mistura promíscua de necessidades.
− Ah, que lindo este bordado inglês!
− É novidade. Lançamento. Lindo em dourado, não é mesmo? Temos também com prata. Vou mostrar.
− Eu vim procurar botões...
− Só para conhecer. Os botões temos em promoção.
Sacos e sacos de botões de todos os feitios e cores são espalhados no balcão.
− Um real cada. Uma oportunidade que não sei quando repetiremos.
Ana Cristina faz cálculos rápidos. É boa em números. Vive de adições, diminuições, multiplicações e divisões; principalmente divisões. Só de pensar em abandoná-los sente falta de ar, uma arritmia no coração. Só de pensar em gastar no mercado para eles, dá uma raiva terrível.
Separa quatro pacotes de botões, o bordado inglês lançamento, duas metragens de fitas e uma agulha própria para chuleados.
Sai.
Alguns metros à frente tem uma loja de artigos para bijuterias. Precisa ganhar mais dinheiro. Ouviu a notícia de que o leite subirá. Entra.
O curso de bijuteria foi muito útil. Precisa apenas de mais variedade de miçangas, contas e montadores. Talvez devesse levar mais uma caixa para guardar. Gosta das caixinhas repartidas por que fica tudo organizado, sem misturar o que facilita bastante o trabalho.
Chega à repartição carregada de coisas. Não tem nada de serviço para fazer e o chefe é muito mais moço que ela, tem respeito. Pode fazer o que quiser que ele não reclama, sorri e balança a cabeça: Essa Dona Ana...
Ela esparramou os botões sobre a mesa. São dezenas. Separa como quem cata feijão: cada tipo, cada cor, cada formato. Conversa com eles em pensamento, não será tão louca a ponto de falar em voz alta:
− Fica aqui, com teus irmãos. Tu, não, tua família é outra. Sozinho? Coitado... Não liga, é bom, ninguém te torra a paciência e nem te cobram nada. Família é um mal necessário. Imagina o que eu faria sem a minha? Estaria internada, com certeza. É por isso que ajudo. Não como tentam me convencer que sinto culpa por ter e eles não. Já passei os pecados, o pão que o diabo amassou. Como poderia sentir culpa?
Controlá-los? Deus me livre! Claro que do jeito que vivem é preciso estar aconselhando, cortando as arestas que nascem mais que erva daninha. Tira um ranço vem outro. São como crianças. Bem que gostaria de me livrar, mas...
Termina o expediente, ela junta toda a tralha separada em saquinhos que comprou na hora do cafezinho. Gosta de organização, tem que ser tudo padronizado. Nada de bagunça, um saco de cada jeito, de aproveitamento. Nada disso. Todos iguais.
Chega em casa e está contente, as compras nas mãos revigoram, passam uma sensação boa de preenchimento. São coisas dela, só dela.
O telefone toca. É o cunhado:
− Acabou a carne, os pobres cachorros, oito, não podem comer outra coisa, enfraquecem.
Ela corta o papo:
− Esteves, não tenho mais dinheiro. Vocês deixam de comer carne e dão para os cachorros. Pára de tomar tanto leite e dá a eles. Vocês pensam que sou saco sem fundo? Têm que aprender a administrar a comida. Parar de chamar a pobre vizinhança sem eira nem beira para comer aí.
− É tua irmã. Está doente, bem sabes quanto. Tu não tens coração. Ela é boa, caridosa. Meu salário se vai num vapt. Tens que ajudar.
Ana Cristina está indignada. Uma raiva disforme. A imagem da irmã, imensa, rodeada de cães, com um chicote de palavras na mão para ela e o marido. Para os demais a doçura do sentimento. Sente uma insuportável vontade de chorar. Que vida mais idiota, quer partir para lugar algum. Se ao menos a imagem do pai não voltasse junto.
É igual ao pai, servindo e servindo.
− Eles mudarão, ah, se mudarão!
Sabe que está falando asneira, eles não mudarão e nem ela.
Pega a bolsa e sai na noite fria. O supermercado é logo ali.
Mas é só mais dessa vez...